Existe vida além do mercado?

Amigos, eu lamento muito desapontar os que pensam na Educação como meio utilitarista, notavelmente para gerar ‘máquinas’ produtivas e comerciais. Aliás, mesmo assim tem sido um desastre nosso sistema: que péssimas máquinas! Todos esses índices numéricos como IDEB e ENEM de nada mais servem do que para induzir políticas públicas, quando muito. Servem também para mensurar o trabalho desalmado de muitos ‘mestres’, que não mais medem o ‘sucesso’ na vida das crianças, senão nos números estatísticos. Vários povos experimentaram o pleno emprego de recursos na produção, como a Inglaterra da Revolução Industrial. Mas essa ocupação ‘plena’, que hoje cega, mas ignorantemente ainda se persegue, no máximo causaria o exaurimento das forças sociais e dos recursos ecossistêmicos, restringindo pessoas à natureza de máquinas, de um lado, e de consumidoras vorazes, do outro…

É esta a síntese do pensamento humanista contemporâneo, notável em Aldous Huxley e Hannah Arendt. Aliás, desde o trabalhismo varguista, é urgente: Educação deve servir a propósitos maiores que o trabalho. Não há um só componente da produção massiva que “humanize”.

Inclusive, a educação deve preparar o homem com essas cautelas: formando e informando sobre as limitações máximas de sentido que se deverá atribuir ao trabalho. Uma Educação saudável também pregará que a subsistência de um “ser completo”, por sua vez, vai além da produção do lucro material e da felicidade ilusória, repisada pelas mídias de massa.

Recursos e sistemas educacionais em contexto de desemprego e subemprego costumam viciar-se na direção única do emprego, assim como, em regiões de urbanismo precário, tende-se a colocar o futuro das crianças a serviço de um progresso numérico, pobre, materialista.

Tais inspirações de nada mais padecem do que da tacanha visão economicista moderna. Por essa corrente, intenta-se ir no repuxo da riqueza, como se a “animalidade” despertada na consecução pragmática da “prosperidade” pudesse, num dado momento do progresso, refletir e refrear-se em busca de um sentido maior para o que se faz… Não cabe esse otimismo: a orientação industrialista é um caminho sem volta; não teremos humanos ao fim desse processo.

Uma cidade pode estar erguida, a rigor dos conceitos urbanísticos mais modernos, e, no entanto, nunca ter alcançado satisfatório grau de “civilização” humanística. O processo que ignora o ser humano, aliás, é o fundo corriqueiro das mais brutais desigualdades.  A Educação, no sentido proeficiente, nobre, é o processo holístico que envolve o ser, desde o ventre materno, até o idoso dignificado, que restou sábio o suficiente para expressar-se e semear sua sabedoria.

A Revolução Silenciosa

A nós que sonhávamos com dar a vida pela ‘revolução tardia’, a História cruelmente se encarregou de demonstrar que é inaplicável o Socialismo, em nível de um Sistema Geral. A razão primeira desse impasse é a caótica humanidade de que dispomos – ninguém poderá construir um edifício sem matéria! Mas, a grande questão é “em que poderá ser revolucionária essa paixão humanística que restou latente dentro de nós?” Este é o dilema dos órfãos da revolução.

Ressalte-se que o grande oponente da mudança – o reacionarismo – agora é outro; ou pelo menos está complexificado na figura hipócrita da Democracia Social, que, até então, apenas tem sociabilizado os lucros do privilégio entre seus pares.

Contrapondo-se a isso, as características de cooperativismo e associativismo podem, e estão aí, a minar as bases de uma democracia neoliberal muitas vezes direcionada ao contrário das funções essenciais do Estado, que é a promoção do bem estar e do desenvolvimento humano. Também a correlação que se tem feito entre Educação e desenvolvimento, no âmbito dos organismos internacionais, tem impulsionado os governos locais ao debate dessa agenda. Está, parcimoniosa, mas é verdade, uma ‘revolução’ social em curso, silenciosa. Ecoando dos rincões, conseqüência dos gritos de opressão e violência. Mal ou bem, os cabrestos têm sido arrancados e duras penas terão que ser pagas pela liberdade, e pelo direito de revolucionar, no alcance da individualidade.

Portanto, extintas as metas radicais do Socialismo Utópico, ainda mais urgentes permanecem os anseios de humanizar o homem. Resta latente o sentimento inquieto na busca da justiça e da igualdade cívica. O grande terreno mundial que se almejou como cenário para a construção da verdadeira harmonia entre humanidades, agora se acha reduzido ao pequeno espaço dos corações e mentes humanistas. Disso salta evidente que a ‘nova revolução’, em seu discreto modo de obsessão, ainda vive, e cada um deve tomar o seu pequeno mundo social, para transformá-lo com o amor – aquele amor que, segundo Ernesto Guevara de La Serna. Move todo revolucionário.

Não é mais o Socialismo de massas iluminadas e pungentes, mas agora são pontos cintilantes de inconformismo. A isso podemos chamar ‘consciência humanística’, em contraposição à inaplicável ‘consciência de classe’. Não se trata, contanto, de apregoar o típico individualismo que condenamos na sociedade de consumo. É somente a crença aplicada de que o homem, no seu íntimo, pode refletir com amor e partir para transformar sua posição. A batalha deve ser travada no nível do espírito, lá onde o capitalismo hedonista foi fazer suas presas. Se o materialismo marxista perdeu em ignorar o subjetivismo da alma humana, nós, com menções de doçura e fraternidade, podemos cooptar o homem através do apelo à sensibilidade. Somente o amor transforma. Sem sangue e sem dor.

Paula Fernandes e o Sentimento do Fado

Eu estou há algum tempo invejando comigo as fadistas portuguesas, estas que ouço meio às escondidas, porque, ao me virem fazê-lo, certamente perguntarão se estou apaixonado, e terei que ser enfático na negativa, contrariando expectativas triviais. A música no Brasil, desde a ritualística africana, sempre esteve atrelada a atributos funcionais: música pra dançar, música pra invocar, música pra amar, etc.

No entanto, nota-se que as culturas mais amadurecidas há muito descobriram o puro ‘sabor’ estético das canções. Neste sentido, estranho que o sentimento sincero do fado não tenha mais importância nas terras coloniais de Portugal, notavelmente nesta chamada Brasil. Acredito que, por acidente de percurso, ou conveniências, resolvemos importar só os vícios de lá.

De minha parte, adoro o minimalismo instrumental, na escala harmônica executada ao violão e banjo, com seus ‘choros’ entre um e outro soluço da intérprete emotivada; adoro os silêncios que intercalam as falas balbuciadas à boca miúda; adoro tentar desvendar uma língua que falo, mas dita por uma alma embebida de outras experiências; adoro, em especial, o sentimento das fadistas mais ‘modernas’, como Mariza, Ana Moura, Raquel Tavares e Dulce Pontes. Gosto, especialmente, de Adelaide Ferreira, cujo estilo popular, mesmo que não se possa chamar de Fado, no sentido ortodoxo, ainda traz ‘sotaque’ fadista. Esta ouço comumente. Sua roupagem instrumental é realmente mais atual, e o sentimento é igualmente dramatúrgico.

Voltando ao início do artigo, a inveja se minimiza no momento em que sou surpreendido pela melodiosidade dramática de nossa excelente intérprete brasileira Paula Fernandes. Meu Deus, a voz é divina! Uma voz que finca raízes nas distâncias psicológicas; que traz pronúncias cheias de sentido. Espero seja esta jovem entendida, pra que não caia na vala comum dos ‘bregas’.

Esta cantora é exatamente uma intérprete, do porte de Alcione, Elis e a pirada Janis Joplin. Entenda que o ‘absurdo’ de se correlacionarem estes nomes, de tão díspares estilos, se dissipa quando se prova que estas pessoas cantam com a alma, vestem a letra.

Outra coisa interessante no fado é sua identidade costeira-marítima, porque nós, de Búzios ou Florianópolis, também somos povos tipicamente costeiros, compostos por homens do mar, de mulheres que esperam na praia, de crianças que mal sonham, por não ter com o que sonhar — foi assim nossa realidade histórica.

Recomendo em especial o ”Fado Português”, na voz de Dulce Pontes, onde é contada a história poética do surgimento do fado e cujo video emociona, pela cenografia histórica. Assistam aqui:

No mais, deixo outros links para canções de artistas citados acima:

Adelaide Ferreira: Dava Tudo  |  Ana Moura: Os Búzios   |  Raquel Tavares: Rosa da Madragoa  | Raquel Tavares: Olhos Garotos  | Mariza: Barco Negro.