Sobre assassinos e seus cúmplices

A vida é o supremo valor humano. Por isso mesmo temas como aborto, pena de morte e eutanásia são tabus em todas as sociedades e provocam cisões de opinião mesmo aqui em nossa comunidade pluri-pseudocristã.

Causa estranheza no entanto quando a morte antinatural é administrada com sutileza, no âmbito de um sistema de saúde decadente como o nosso, sem que isso desperte maiores alardes, inclusive naqueles primeiros defensores radicais da vida. É mais fácil, depois de um falecimento injusto e evitável, se ouvir a famosa frase preguiçosa — deus-sabe-de-todas-as-coisas — como forma de consolação. Ora bolas! tanto Deus sabe quanto nós mesmos, de muita coisa. Sabemos inclusive que a corrupção em Búzios, casada à incompetência gerencial, veio e vai matando gente, sob nossos narizes

Quando esse senhor, médico por sinal, assumiu o poder em Búzios, havia no hospital municipal um sistema de resgate denominado APH (algo como atendimento pré hospitalar), que abrangia desde o pedido de socorro, recebido por pessoas treinadas, no telefone 192, até o atendimento doméstico, ressuscitação, etc. Esse serviço salvava vidas, e não importava se meia dúzia de pessoas não gostasse dele, o achasse caro. Batia recordes no tempo de resgate a cada dia; havia suporte material e de pessoal especialmente treinado para dirimir cada vez mais o tempo de resgate, pois em emergência tempo é vida.

Ocorre que, não sei se por inveja, por desumanidade, incompetência, ou por tudo junto, aquela estrutura foi grosseiramente aniquilada em 2013. Enfermeiros resgatistas — inclusive recém concursados — foram desviados de função, o ambiente virou aposentos de enfermeiros e depósito de tralhas, o telefone está desde então sem atendimento dedicado, fez-se como os romanos fizeram ao templo de Jerusalém: arrancaram até os alicerces!

O programa havia mostrado que os profissionais da nossa rede têm um enorme potencial, mas que só foi e é possível gerar excelência com treinamento constante, profissionalização e investimento em pessoas.

Atualmente, cidadãos morrem, repito: morrem, enquanto muitas vezes o telefone de socorro sequer é atendido. Quando se dá sorte de ser atendido por uma boa alma, a espera pelo resgate é mortal, como no caso do turista que foi a óbito em plena via. Noutras vezes, a falta de equipe ou de ambulância causa um jogo de empurra-empurra entre a emergência municipal e os bombeiros, que pouco podem fazer, pois nosso quartel serve até Unamar.

Em resumo, chamo atenção para essas formas de morte mais numerosas e evitáveis do que abortos e eutanásias: tem gente sendo “abortada” indiretamente sob nossos narizes. A corrupção, a desumanidade e a inépcia gerencial matam mais do que as guerras. •

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“Clamamos pela Vida”: Populares protestam na região da Policlínica, contra mortes ‘inexplicadas’ no Hospital Municipal, em 2015. (FOTO: autoria desconhecida).

Quando o político escolhe a morte em vez da vida

No cotidiano de suas escolhas, muitas vezes ao político cabe decidir indiretamente entre a vida e a morte, e ele conclui, pasmem, optando pela morte. Veja se não é assim o caso da falta de vagas em unidades de tratamento intensivista (UTI), para pacientes assistidos no hospital municipal de Búzios.

Ocorre que, desde o início do governo Toninho Branco (2005), o Dr. Taylor, secretário de saúde, preferiu não assumir as despesas deixadas pelo governo que o antecedeu, que não passava ali de cento e poucos mil reais. E as UTIs privadas, que tantas vidas ajudaram a salvar, caíram numa espécie de lista abjeta, sendo gradativamente caloteadas. Não custa lembrar do caso envolvendo o neto de um conhecido comerciante de Manguinhos, que comoveu toda a Cidade, quando o bebê veio a falecer obscuramente, “aguardando vaga”…

Logo depois, quando o Dr. André Granado assumiu a Secretaria de Saúde, nos idos de 2006, não agiu diferente: as UTIs continuaram como item a ser economizado.

O suplício só veio aumentando, com ‘economias’ cada vez maiores, como se a sobrevivência de pessoas fosse um item a ser cortado, enquanto as terceirizações de outros segmentos avançam questionavelmente contra as finanças públicas, sem garantir eficiência. E o antigo secretário ─ André Granado ─ atualmente é o prefeito. Ou seja: não lhe falta informação nem conhecimento de causa.

E para resumir o drama, o cenário hoje então é este: o paciente que precisa de cuidados intensivistas permanece numa unidade intermediária – UI – do Hospital de Búzios aguardando a vaga surgir nos poucos hospitais credenciados pela Secretaria Estadual de Saúde. Coloca-se o nome do paciente lá e pede-se à família que reze, que bata um tambor ou acenda velas, ou ainda, que procure um político influente.

Pesquisando o gasto com UTIs, depois de 2000 até a fundação do hospital, descobrimos que a saúde nunca pagou mais do que 300/400mil reais por ano com essas internações necessariíssimas. Mas os secretários de saúde e o prefeito lavaram e lavam as mãos: “a obrigação é do Estado”.

E é de se maquinar na mente como essa gente põe a cabeça no travesseiro, e se consegue dormir em paz simplesmente com a tese dúbia de que “não pode fazer nada”, pois “as vagas são reguladas pelo Estado”.

Perguntamos: o poder público não tem a vida como o maior bem a ser tutelado? Qual o valor da vida, para a classe política que nos infesta? Quantos mais terão que morrer, e quantas vezes mais teremos que deixar profissionais da área de saúde – médicos e enfermeiros – numa sinuca de bico ética e técnica, pois os recursos do hospital são escassos em muitos casos graves? Até quando o trabalhador da Saúde terá que se contrapor às famílias, compreensivelmente cheias de angústia, por culpa de um sistema desumanizado?

A esta altura vamos ao paradoxo que inspira o título do artigo: ocorre que o governo, embora rechace o gasto dessa soma com a manutenção da vida, não teve o mínimo pudor de chegar alugando 4 (quatro) ambulâncias ao custo de mais de 1 milhão por ano! Este é apenas um exemplo. Ou seja, entre gastar 300 mil com UTI, prefere-se gastar mais de 1 milhão com ambulâncias alugadas como se UTI fossem, mas que, segundo relatos de profissionais, em diversos momentos, não estavam sequer aparelhadas para simples remoção!

Resumindo: quando se prefere gastar com terceirizações de serviços-meio a gastar com UTIs, abandona-se a vida e opta-se pela morte.

Idoso enfermo

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Nota: cabem aqui dois esclarecimentos. Primeiro: nem todos os casos graves têm indicação de UTI. Segundo: o serviço intensivista, quando indicado, nem sempre será capaz de manter ou recuperar a saúde.

Crimes perfeitos: assassinos festejados

Dado um dos mandamentos dizer ‘não matarás’, e considerando o que vi em minha experiência na Administração da saúde, que tem burocratas cruéis, incompetentes e religiosos matando com canetadas, arrisco denunciar aqui certos morticínios insuspeitos do cotidiano:

Assassinato não é apenas ação de quem desfere uma facada ou puxa um gatilho. 

Assassinato é também deixar de prevenir a morte, quando se dispõe de meios para fazê-lo. O risco de assassinar não é apenas assumido por quem se embriaga e conduz automóvel, ou daqueles mecânicos de aeronave que marcam ‘ok’ no item danificado.

Mata dolosamente, repito: do-lo-sa-men-te, aquele que pode por à disposição do doente gravíssimo uma vaga em leito de UTI e não o faz, alegando “economia” (até quanto você pagaria pela vida da sua filha?).

Mata quem não administra ao doente hospitalizado a medicação que ele, pobre, não pode pagar, e no silêncio do leito não pode reclamar. Mata de modo mais cínico, mas também dolosamente, aquele que deixa o diabético e o hipertenso serem destruídos por dentro, silenciosamente, por falta de remédios mais baratos do que um pão.

Mata, friamente, quem atrasa e burocratiza o acesso a exames que podem revelar o câncer na fase curável, para relegar o paciente à morte dolorosa em curto tempo.

Mata o lobista, que impõe prioridade nos recebimentos e compra o direito nefasto de terceirizar setores onde o dinheiro da saúde escorre, para ser dividido por sócios no assassinato – essa é a matilha de lobos lacerando o cadáver da vítima-paciente.

Mata com requinte de crueldade, os desgraçados e hipócritas, que ostentam religião mas seguem matando festivamente.

Doente acamado.

Patronalismo e paternalismo – as duas faces da mesma decadência

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Búzios atualmente tem um governo patronal, que desagrada um grande segmento privado também patronal, mas este não demonstra caráter reativo, exatamente pelo tênue fio de identidade que os une, resultando numa ‘ppp’ terrível (parceria público-privado).

Observação: não confundir esses parônimos – paternalismo e patronalismo – pois cada governo que se instala dosa em que proporção vai usar os dois, sendo essa dobradinha de ‘ismos’ as duas faces de uma mesma moeda: a decadência.

O patronalismo histórico – mais forte agora do que nunca – vem estagnando e destruindo Búzios, seja por dentro do governo seja na economia privada. A característica mais deletéria desse sistema é o arrocho salarial e a repulsa em investir na mão de obra, que não é das melhores na região, todos sabem.

No fundo, o investidor ‘padrão’ que chega a Búzios foge do ambiente competitivo das metrópoles, mas se depara com um turismo semi-profissional, com alto custo de insumos, com sazonalidades etc, então cede à tendência de fazer o lucro nas costas da mão de obra, eternizando sua condição.

Por essa ótica patronal, salários cada vez menores, e quanto mais tempo se tiver para pagar, é vantagem para o patrão.

Dentro do setor público, cuja grandeza orçamentária deveria ‘puxar’ o setor privado, funciona a mesma lógica de opressão aos ‘peões’, enquanto a ‘casta’ que recebe vencimentos acima de 3,5 mil reais fica com 67% da folha.

Já quando critica o referido “inchaço”, a classe patronal – de fora e de dentro do setor público – não demonstra nem vontade nem capacidade de criticar o problema real: ela prefere condenar João das Couves na mesma sentença de Austregésilo Bittencourt.

Seguem assim os cegos-com-caros-óculos, e segue assim um prefeito incompetente para a Cidade toda e tirano contra o trabalhador.

O ser humano não tem sido proridade

"Tempos Modernos", com Charles Chaplin

Imagem do filme “Tempos Modernos”, com Charles Chaplin. A obra faz uma crítica bem humorada ao ‘fordismo’, conceito que extrapola a importância das máquinas e da padronização da conduta humana, em busca da meta insaciável de produtividade. Diferente porém do fordismo, a Administração Pública não tem buscado produtividade: busca a submissão do ser humano, em busca do lucro patrimonialista de alguns privilegiados.

Inaugurar um novo ‘prédio de saúde’ não tem sido novidade em Búzios. Imaginemos inaugurar um veículo recentemente adquirido, sem garantir-lhe o condutor e o combustível para andar… Assim é abrir novas ‘portas’ na saúde: despertar demanda sem garantir sua satisfação. A rejeição e o descrédito são garantidos. 

Esse aparente ‘erro’ estratégico não tem motivo técnico, senão político, fundado em vícios de enriquecimento ilícito e de desprezo pelo pessoal de carreira, já que o rodízio do empreguismo é um sustentáculo político muito aceito pela comunidade buziana. E, por outro lado, uma forma de ‘subir de vida’ em Búzios é montar uma empreiteira e… ou trazer uma empreiteira da baixada e…

Essa conduta empobrecedora é deliberada, denunciada pelo índice de investimento público, que não passa de 10% do orçamento geral.

Contraposto a isso tudo, está na contabilidade o conceito de ‘despesas de capital’,  que incluem o investimento (isso mesmo) na qualificação de recursos humanos. Ou seja, investir na mão-de-obra das unidades de saúde tradicionais também seria computado como ‘investimento’, mas esse gasto há 15 anos em Búzios vem sendo ‘0’ (zero). 

A prioridade do parco investimento público é o cimento, o pau, o vidro, a tinta, quase sempre superfaturados, alheios a um planejamento infraestrutural global. Quando muito se compra equipamento, para depois se descobrir inoperante, como uma caro aparelho de ultrassonografia que não tem especialista para operá-lo.

Devemos ter em mente que os serviços públicos são ruins, considerado o alto custo, não por acaso. Há um risco assumido. A prioridade não tem sido o ser humano ─ nem o cidadão, nem o trabalhador público.

Mas por que, perguntarão vocês, o investimento na qualificação das pessoas não é prioridade? Obviamente não há lobistas oferecendo qualificação cara com pagamento de propina ou ‘ajudas’ de campanha a políticos; se sim, seríamos uma referência em qualidade de recursos humanos e a saúde seria bem melhor com os mesmos prédios, apenas reformados equipados e readequados. ─

Inchaço da folha ou deformação? (O Mito)

Historicamente Búzios não traz em destaque grandes problemas em relação à quantidade de empregos. A qualificação técnica é que, condicionando ganhos, produtividade e desenvolvimento, parece ser o paradigma a ser quebrado. Na abordagem específica do setor público, especialmente, a questão qualitativa se avulta, fazendo urgir que aprofundemos a crítica, sob pena de alimentarmos um discurso inócuo, não corretamente reflexivo, como poderemos concluir.

O hospital, por exemplo, degenera seus serviços a cada ano por questões estruturais e organizativas, mas também pela falta aguda de profissionais, principalmente de enfermagem e administração. As diversas fiscalizações do município sofrem a falta de fiscais e técnicos de apoio, por isso estão semi-operantes, amarradas diante do caos. A atenção básica não funciona como exigido, pois faltam médicos, agentes comunitários, enfermeiros e profissionais de várias clínicas de apoio. Na educação faltam professores, principalmente de disciplinas exatas, como química e física, incapacitando jovens para competir em avaliações nacionais e para ingressar em faculdades públicas.

Paradoxalmente, a folha de pagamentos do município está ‘inchada’, como costuma dizer a crítica, tendo razão apenas preliminar; isto porque a classe que tem voz em Búzios se demonstra pouco capaz de perpassar a barreira do óbvio e superar essas críticas triviais, baseadas em números mortos, além de mascarados.

A folha do setor público está sim sobrecarregada pela crise de má qualidade e de mal contingenciamento setorial ─ há gente de menos recebendo muito e gente demais sofrendo o achatamento salarial que se acumula há anos. Há também pouca gente qualificada e muita gente sem qualquer perspectiva de evolução técnica-profissional, não sendo evidentemente o “inchaço da folha” causado por gasto com especialistas ou com mérito, mas pelo paternalismo. Finalmente, há gente demais produzindo pouco, em ambientes ociosos, e gente de menos sobrecarregada, que vê todas essas negligências com humor de indignação e de desmotivação.

Prefeito da cidade discursa entre empregados comissionados da prefeitura.

Prefeito da cidade discursa entre empregados comissionados da prefeitura. (foto: perfil FB da PMAB. Autor____)

Então eu gostaria de apelar à razão: dizer que 54% de gasto com folha é absurdo afasta da realidade e não tem qualquer utilidade prática, além de demonstrar desconhecimento de que as principais políticas públicas devem ser administradas e ministradas por mãos humanas. Ora é sustentável economicamente que o setor público pode, utilizadas as técnicas de gestão, prover, sem prejuízo macroeconômico, boa parte das necessidades de emprego da comunidade. Basta que se organize a máquina pública com foco na moralidade e na eficiência. Diversos países desenvolvidos do mundo alcançaram essa meta.

O planejamento dos investimentos globais pode muito bem incluir o investimento na própria mão de obra, e concorrer para a mesma finalidade ─ o progresso social. É preciso, portanto, acabar com a tese superada internacionalmente de que com pessoas se faz gasto, não investimento. A ‘matéria prima’ essencial do desenvolvimento de uma comunidade é o cidadão evoluído, no aspecto profissional e humano. ─

A Verdadeira Búzios

Discordo radicalmente de um segmento critico, que diz ser Búzios uma cidade rica.

Bem, o que se pode afirmar com certeza é que o orçamento público é alto, o que eleva a riqueza per capita ao patamar da ilusão de ótica.

Ocorre que esse orçamento público é 73% subsidiado por recursos externos – a fazenda municipal arrecada apenas 27% por esforço próprio, dentro do município; acrescente-se a isso, que o volume quase total desse orçamento artificial é comprometido pelo custeio, e uma parte enorme é dirigida a terceiradoras de serviços, restando cerca de 6% para o investimento.

Aprofundando apenas até aqui, concluímos desapontados que também o pouco investimento sofre de mal planejamento. É ausente o tipo de investimento infraestrutural, que alimentaria um ciclo virtuoso de desenvolvimento.

Vejamos bem, considerando válida esta análise, concluiremos que, quem diz que Búzios é rica certamente tem o cacoete da classe média tradicional: só olha o cume da pirâmide, sem debitar a pobreza e a miséria abaixo, na ampla base.

Essa classe crítica não considera que o capital ‘real’ do território está imobilizado. De um lado nas mansões, nas glebas particulares e no ambiente natural, e de outro, na falsa potência orçamentaria pública, também ‘imobilizada’ pelos compromissos de governo citados acima, que não despejam liquidez em Búzios, visto que as grandes terceirizadoras são sediadas fora da cidade.

Ainda cabe ressaltar que os melhores salários do setor público são injetados fora de Búzios, especialmente em Cabo Frio.

Feitas estas considerações, efetuemos: Búzios menos orçamento público subsidiado, menos capital imobilizado, menos ecossistema degradado, menos deficit infraestrutural… é palpérrima; tão pobre que a simples mudança do ponto de ônibus de frente ao Celso Terra para a frente da 1001 fez fechar 2 lojas! (foto abaixo).

O dinheiro não circula. O veraneio não proporciona a fixação de uma classe média consumidora importante e o turismo, amador, não se sustenta em nível desejável o tempo todo.

O que quero dizer com isso? É que só começaremos a resolver nossa estagnação quando reconhecermos com realismo a gravidade da situação.

O discurso de que Búzios é uma cidade rica artificializa a crítica e fornece uma falsa base ao planejamento público, cada vez mais ficcional.

(Fontes econômica e orçamentária: IBGE 2014)

Lojas fechadas no Centro

Duas lojas fechadas ao lado da Asfab, após a retirada do ponto de ônibus que movimentava o local.

Um ‘causo’ da minha vida, para quem gosta de ler

Foto: Alessandri Adriano

Aos 18 anos eu trabalhava de vigia num lugar quase descoberto, sem paredes, e precisava forrar o chão com jornal, bem grudado ao motor de um freezer, para não enlouquecer de frio. Era um quiosque de comida alemã, no Shopping do Helion, no Centro de Búzios, que, quando encerrava o movimento, eu vigiava.

Num dia de inverno, à tarde, saí com um amigo, para colocar rede de tresmalho, de fundo, e perdemos a bóia que marca as extremidades dela. Estávamos bem por fora da Ponta da Cruz. O vento virou subitamente para sudoeste, era muito forte e empurrava o barco para o mar alto. Nos desesperamos, pois não podíamos parar de procurar a rede: era emprestada! Além disso não pegamos sequer um peixe para ‘pagar’ o empréstimo. Como o mar estava com ondas grandes, enquanto um remava, o outro deitava no fundo do barco, para não ser atirado para fora. Sei que saímos vencidos, após quatro horas de luta. E tivemos que encalhar na Prainha do Amor. Horas depois, no seguimento da noite, tive que ir para o trabalho mesmo assim, morto e febril.

Estava tão exausto de remar, que dormi um sono pesadíssimo grudado no motor do freezer. Morgado. Moído. Pior: naquele dia só tinha um exemplar de O Peru Molhado para cobrir o Chão. Rachava o frio de setembro. E o dia foi clareando sem eu perceber… Eis que me chega o ‘patrão’, lá pelas 8 horas ( ! ) e se depara com a cena de um “vigia-mendigo”. Dá uns biquinhos com a bota em minhas costelas – ele estava embriagado, e acabara de sair da antiga Pachá. Eu acordo atônito. Cego pela claridade. Ele, um filipino de 2 metros, mira a baixo, faz cara de insatisfação e sai resmungando em seu idioma. Nada disse, porque eram já seis meses de trabalho sem um dia de folga!

Depois desse humilhante episódio, assustado, continuei as pescarias, mas passei a tirar os cochilos inevitáveis sobre um balcão de aproximadamente 20cm de largura por 90cm de comprimento, à margem do corredor; só tinha medo de dormir e cair. Pessoas passavam e viam aquele ser incógnito equilibrado sobre o nada… Talvez eu fosse julgado como mal trabalhador, não como um bom sobrevivente.

E assim passei momentos em que minha consciência do mundo foi se formando ‘subterraneamente’. A gente é fruto das agruras, como uma pedra redonda, que já rolou pelo mundo. Hoje, quando ouço a lenga lenga dos saudosistas buzianos, eu fico me perguntando, se tenho mesmo saudades, e de quê.

Obviamente tenho um desejo de ver nossa História documentada. Só tenho medo da maquiagem, porque dizem que a historiografia da ‘guerra’ é monopólio do vencedor.  ♦♦♦

Bairrismo ou Preservação?

Existe aqui uma mistura “cínica” (sem ofender) entre bairrismo e preservação, entre egoísmo e ecologia, e, por conseguinte, entre conservadorismo e ‘desenvolvimento sustentável’: quem já fez seu pé-de-meia suficiente a uma bastante sobrevivência, esquece-se de pensar nos novos empreendedores, e não falo dos ‘de fora’; esquecem-se das demandas de melhores salários da juventude, nas escolas fracas, na falta de Saúde Suplementar, na ausência da saudável competição comercial, o que causa preços corrosivos aos salários já baixos. Esquecem-se, essencialmente, de que o mercado precisa se capitalizar, para gerar interesse ao investimento, quiçá ao bom investimento. Até aí está o óbvio, desde que a mão parkinsoniana do estado discipline a grande mão adamsmithiana, e que o concreto não arranque até as raízes das pessoas e das árvores!

Mas esse conservadorismo, embora egoísta, diz que se preocupa com o “futuro de nossos filhos”…  Ora pois!! Que futuro legaremos para esses coitados da casta dos empregados, que hoje perambulam pelos poucos bancos empoeirados de pracinhas? Que futuro legaremos aos jovens de classe média, se seus pais os mandam para metrópoles, em busca de melhor ensino, e se este “melhor ensino” não tem rentabilidade aqui? Se eles serão outros veranistas de fim de semana ou aposentados? Que futuro terão, se, ao se pretender acesso à Saúde Suplementar, tem-se que ir ao Rio ou Niterói? Entretanto, este que vos escreve, receia ser confundido com os concretadores de natureza. Tenho dezenas de razões para repugnar o veraneio como tendência generalizada, disseminado através dos malditos condomínios horizontais; e sei que serei atacado exatamente pelos “conservadores”, cheios das boas intenções, daquelas que servem de leque no inferno…

Mas essa “verdade” comprado pronta, acha que o apego às coisas “turísticas” é a única ferramenta historiológica. E o sentimento muitas vezes tido como de ‘preservação’ é o mesmo que surtou no Rio de Janeiro, à época da reforma sanitária comandada por Oswaldo Cruz, em mil novecentos e poucos. O povo achava um belo símbolo cultural e um progresso da comodidade, por exemplo, o vendedor levar vacas às portas das casas, para o morador beber com galhardia o leite, a um metro das tetas, antes de bradar ─ a vaca é boa! E o vendedor, valente, desafiar: se não der 10 litros eu chuto o balde!

Paralelamente, no mesmo governo do presidente Rodrigues Alves, Pereira Passos (engenheiro) foi o primeiro a dar-se tecnicamente com o dilema das favelas, então já petrificadas na paisagem. Coube-lhe, e a Oswaldo, pois os temas eram correlatos, pensar que as favelas deveriam ser quase literalmente ‘aplanadas’, e muitos morros foram assim remodelados. Quem ali foi conservador, no bojo das boas intenções, contribuiu para a eternificação de diversos flagelos.

Ora, dando-nos ao trabalho da pesquisa histórica veremos que este é um exemplo emblemático, mas apenas um no rol de fatos sociais combatidos pelo conservadorismo, em nome da “preservação”. Como podemos renegar que o Mundo sempre evoluiu à força da mão e das mentes humanas? Como renegar que o nosso bem-estar eventual pode não ser suficiente para o futuro, e que, diante disso, futuras mudanças não admitidas hoje, podem vir dolorosamente pelas mãos sub-reptícias do acaso e dos cifrões? Podemos negar que o desenvolvimento deve cobrar seu preço, e que não temos a prerrogativa de passar décadas a negociar, sem a perda de toda uma geração socioeconômica? Refletindo por essas premissas entenderemos que muita energia é inútil diante da realidade, e que mais vale a pena historializar do que petrificar.

O caso mais, ‘fresco’, o da Rua das Pedras, eis aí para demonstrar o que digo. Nele há um teor de 30% de tensões políticas, 30% de conservadorismo e 40% de justas preocupações. Poucos tiveram a serenidade de pensar “para frente”. Raros fizeram o juízo de conveniência e oportunidade, e alguns exaltados chegaram a bradar “absurdo, absurdo!”, entre eles o urbanista que comandou a obra da nossa iconográfica Rua e o secretário de turismo que trabalhou para mantê-la cheia de consumidores por mais de uma década. Afora o alarmismo, muitos saudaram os benefícios dos idosos, a melhora da acessibilidade, a fluidez dos passos das crianças e seus pais, numa via de acesso pedestre apenas.

O pitaco que ousei levantar foi o seguinte: as pedras continuarão lá, com sua irregularidade apenas no plano horizontal, coisa que é típica; os pontilhões, as enormes gretas, embora possam remeter às velhas sendas feitas por escravos, já não são mais ergonômicas e seguras. E, se devemos pensar em termos históricos, devemso nos perguntar: onde estão os pés descalços que transitavam lá antes das pedras serem assentadas? Onde estão os idosos que ali contrairam bicho-de-pé? Será que as garantias humanas dessas pessoas são e serão mantidas? Por que colocamos no caminho do homem da terra condomínios e mansões que vetam ou dificultam o acesso ao mar? Por que não regularizamos as posses seculares, para que os nativos não precisassem vender seus bens ‘embaraçados’?

Vá lá a má comparação: o governo Egípcio não se sepulta mais em pirâmides; os índios quase não se portam nus… Mas nem os jazigos faraônicos nem a nudez típica foi esquecida. O que avança sobre tais elementos antropológicos e sociais é exatamente a usura moderna, e esta o conservadorismo não supera, apenas agrava. Estão lá os índios acuados, não tão somente como etnias, mas como seres humanos, portadores de direitos nada maiores nem menores do que os dos ‘brancos’. De igual modo, no Egito, como documenta o jornalismo internacional, as garantias essenciais do homem vêm sendo atualmente renegadas, embora incólumes estejam seus constructos milenares. Então perguntamos: quem é maior: o homem, com sua cultura pungente,  intrínseca e capaz de se transformar racionalmente, ou a conservação fria das ‘coisas’?

Ainda cabe a última contraditória nota: com todo o respeito que temos à contribuição paisagística dele, o próprio arquiteto que brada pela autoria da Rua das Pedras é aquisitor de terras nativas ‘embaraçadas’, portanto, um erradicador do homem nativo. Ou o homem nativo pode ser excluído da História?

Sustentabilidade versus concreto

Nas últimas décadas, a demanda crescente por residências de veraneio em Búzios, somada às características da mão-de-obra local, fixou o paradigma de que a construção civil era uma vocação econômica.

Esta conclusão fez a Economia privada bipartir-se entre a residência de veraneio e o Turismo de Hospedagem, em prejuízo do incremento deste último, como objeto de direcionamento urbanístico desenvolvimentista. Por sua vez, as forças políticas, de cunho claramente populista, desde cedo estiveram a serviço dessa ‘indústria’ – de concreto e de falsas verdades. Políticos e pretendentes, cooptados pelos lobbies empresariais, através de financiamento de campanha e outras afinidades, mal podem demarcar onde terminam os interesses da Cidade, os próprios e os dos lobistas.

É por esta ótica  que me parece essencial a percepção, o esquadrinhamento, desse falso paradigma, para então desconstruí-lo em sua irracionalidade. Obviamente, estando aquele paradigma arraigado como está dentro da cultura buziana e constituindo uma apropriação cultural, é preciso ter coragem para quebrar o paradigma de que a construção é fonte essencial, social e unívoca de riqueza. Pelo contrário. Colocar a construção como ‘produto fim’ no ciclo econômico é um vício temerário, que tende a distribuir concreto sobre toda a superfície do Município, sem que o IDH-M se mova um décimo.

Temos então que parar e fazer um balanço, discutir com a sociedade, para entender se o enriquecimento está sendo da Cidade inteira ou de apenas uns grupos. A natureza buziana não suporta mais concreto, e as pessoas de bom senso já se desconfortam diante das mentiras.