Existe aqui uma mistura “cínica” (sem ofender) entre bairrismo e preservação, entre egoísmo e ecologia, e, por conseguinte, entre conservadorismo e ‘desenvolvimento sustentável’: quem já fez seu pé-de-meia suficiente a uma bastante sobrevivência, esquece-se de pensar nos novos empreendedores, e não falo dos ‘de fora’; esquecem-se das demandas de melhores salários da juventude, nas escolas fracas, na falta de Saúde Suplementar, na ausência da saudável competição comercial, o que causa preços corrosivos aos salários já baixos. Esquecem-se, essencialmente, de que o mercado precisa se capitalizar, para gerar interesse ao investimento, quiçá ao bom investimento. Até aí está o óbvio, desde que a mão parkinsoniana do estado discipline a grande mão adamsmithiana, e que o concreto não arranque até as raízes das pessoas e das árvores!
Mas esse conservadorismo, embora egoísta, diz que se preocupa com o “futuro de nossos filhos”… Ora pois!! Que futuro legaremos para esses coitados da casta dos empregados, que hoje perambulam pelos poucos bancos empoeirados de pracinhas? Que futuro legaremos aos jovens de classe média, se seus pais os mandam para metrópoles, em busca de melhor ensino, e se este “melhor ensino” não tem rentabilidade aqui? Se eles serão outros veranistas de fim de semana ou aposentados? Que futuro terão, se, ao se pretender acesso à Saúde Suplementar, tem-se que ir ao Rio ou Niterói? Entretanto, este que vos escreve, receia ser confundido com os concretadores de natureza. Tenho dezenas de razões para repugnar o veraneio como tendência generalizada, disseminado através dos malditos condomínios horizontais; e sei que serei atacado exatamente pelos “conservadores”, cheios das boas intenções, daquelas que servem de leque no inferno…
Mas essa “verdade” comprado pronta, acha que o apego às coisas “turísticas” é a única ferramenta historiológica. E o sentimento muitas vezes tido como de ‘preservação’ é o mesmo que surtou no Rio de Janeiro, à época da reforma sanitária comandada por Oswaldo Cruz, em mil novecentos e poucos. O povo achava um belo símbolo cultural e um progresso da comodidade, por exemplo, o vendedor levar vacas às portas das casas, para o morador beber com galhardia o leite, a um metro das tetas, antes de bradar ─ a vaca é boa! E o vendedor, valente, desafiar: se não der 10 litros eu chuto o balde!
Paralelamente, no mesmo governo do presidente Rodrigues Alves, Pereira Passos (engenheiro) foi o primeiro a dar-se tecnicamente com o dilema das favelas, então já petrificadas na paisagem. Coube-lhe, e a Oswaldo, pois os temas eram correlatos, pensar que as favelas deveriam ser quase literalmente ‘aplanadas’, e muitos morros foram assim remodelados. Quem ali foi conservador, no bojo das boas intenções, contribuiu para a eternificação de diversos flagelos.
Ora, dando-nos ao trabalho da pesquisa histórica veremos que este é um exemplo emblemático, mas apenas um no rol de fatos sociais combatidos pelo conservadorismo, em nome da “preservação”. Como podemos renegar que o Mundo sempre evoluiu à força da mão e das mentes humanas? Como renegar que o nosso bem-estar eventual pode não ser suficiente para o futuro, e que, diante disso, futuras mudanças não admitidas hoje, podem vir dolorosamente pelas mãos sub-reptícias do acaso e dos cifrões? Podemos negar que o desenvolvimento deve cobrar seu preço, e que não temos a prerrogativa de passar décadas a negociar, sem a perda de toda uma geração socioeconômica? Refletindo por essas premissas entenderemos que muita energia é inútil diante da realidade, e que mais vale a pena historializar do que petrificar.
O caso mais, ‘fresco’, o da Rua das Pedras, eis aí para demonstrar o que digo. Nele há um teor de 30% de tensões políticas, 30% de conservadorismo e 40% de justas preocupações. Poucos tiveram a serenidade de pensar “para frente”. Raros fizeram o juízo de conveniência e oportunidade, e alguns exaltados chegaram a bradar “absurdo, absurdo!”, entre eles o urbanista que comandou a obra da nossa iconográfica Rua e o secretário de turismo que trabalhou para mantê-la cheia de consumidores por mais de uma década. Afora o alarmismo, muitos saudaram os benefícios dos idosos, a melhora da acessibilidade, a fluidez dos passos das crianças e seus pais, numa via de acesso pedestre apenas.
O pitaco que ousei levantar foi o seguinte: as pedras continuarão lá, com sua irregularidade apenas no plano horizontal, coisa que é típica; os pontilhões, as enormes gretas, embora possam remeter às velhas sendas feitas por escravos, já não são mais ergonômicas e seguras. E, se devemos pensar em termos históricos, devemso nos perguntar: onde estão os pés descalços que transitavam lá antes das pedras serem assentadas? Onde estão os idosos que ali contrairam bicho-de-pé? Será que as garantias humanas dessas pessoas são e serão mantidas? Por que colocamos no caminho do homem da terra condomínios e mansões que vetam ou dificultam o acesso ao mar? Por que não regularizamos as posses seculares, para que os nativos não precisassem vender seus bens ‘embaraçados’?
Vá lá a má comparação: o governo Egípcio não se sepulta mais em pirâmides; os índios quase não se portam nus… Mas nem os jazigos faraônicos nem a nudez típica foi esquecida. O que avança sobre tais elementos antropológicos e sociais é exatamente a usura moderna, e esta o conservadorismo não supera, apenas agrava. Estão lá os índios acuados, não tão somente como etnias, mas como seres humanos, portadores de direitos nada maiores nem menores do que os dos ‘brancos’. De igual modo, no Egito, como documenta o jornalismo internacional, as garantias essenciais do homem vêm sendo atualmente renegadas, embora incólumes estejam seus constructos milenares. Então perguntamos: quem é maior: o homem, com sua cultura pungente, intrínseca e capaz de se transformar racionalmente, ou a conservação fria das ‘coisas’?
Ainda cabe a última contraditória nota: com todo o respeito que temos à contribuição paisagística dele, o próprio arquiteto que brada pela autoria da Rua das Pedras é aquisitor de terras nativas ‘embaraçadas’, portanto, um erradicador do homem nativo. Ou o homem nativo pode ser excluído da História?