Caridade versus Justiça

Se o mundo fosse justo, a caridade, no sentido que de imediato nos vem à mente, seria desnecessária. Se os governos fossem equilibrados, também os programas sociais seriam quase totalmente dispensáveis. 

A justiça social e a equinanimidade governamental teriam sido o caminho para um mundo melhor, mais fraterno, menos violento. 

Ocorre que hoje, sem o mundo ser menos injusto, a caridade cada vez mais se recolhe. 

A religião (e os afortunados), no geral, outrora patrona das causas do povo, alcança um estágio de alto dogmatismo e abstração; quase volta a vender indulgências, contradizendo-se no materialismo consumista; provam-se as obras que ‘vivificam a fé’ com atos até pirotécnicos, mas não se mortoficam em dedicação ao outro. 

Por sua vez e neste sentido é que o ‘estado mínimo’ deixaria seus órfãos. Os programas sociais são necessariíssimos. Trata-se daquela mão que ergue o sujeito, e que deve, contudo estimulá-lo a dar os próximos passos. 

No fim, quem tutela a vida colabora com o Sagrado.

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Existe vida além do mercado?

Amigos, eu lamento muito desapontar os que pensam na Educação como meio utilitarista, notavelmente para gerar ‘máquinas’ produtivas e comerciais. Aliás, mesmo assim tem sido um desastre nosso sistema: que péssimas máquinas! Todos esses índices numéricos como IDEB e ENEM de nada mais servem do que para induzir políticas públicas, quando muito. Servem também para mensurar o trabalho desalmado de muitos ‘mestres’, que não mais medem o ‘sucesso’ na vida das crianças, senão nos números estatísticos. Vários povos experimentaram o pleno emprego de recursos na produção, como a Inglaterra da Revolução Industrial. Mas essa ocupação ‘plena’, que hoje cega, mas ignorantemente ainda se persegue, no máximo causaria o exaurimento das forças sociais e dos recursos ecossistêmicos, restringindo pessoas à natureza de máquinas, de um lado, e de consumidoras vorazes, do outro…

É esta a síntese do pensamento humanista contemporâneo, notável em Aldous Huxley e Hannah Arendt. Aliás, desde o trabalhismo varguista, é urgente: Educação deve servir a propósitos maiores que o trabalho. Não há um só componente da produção massiva que “humanize”.

Inclusive, a educação deve preparar o homem com essas cautelas: formando e informando sobre as limitações máximas de sentido que se deverá atribuir ao trabalho. Uma Educação saudável também pregará que a subsistência de um “ser completo”, por sua vez, vai além da produção do lucro material e da felicidade ilusória, repisada pelas mídias de massa.

Recursos e sistemas educacionais em contexto de desemprego e subemprego costumam viciar-se na direção única do emprego, assim como, em regiões de urbanismo precário, tende-se a colocar o futuro das crianças a serviço de um progresso numérico, pobre, materialista.

Tais inspirações de nada mais padecem do que da tacanha visão economicista moderna. Por essa corrente, intenta-se ir no repuxo da riqueza, como se a “animalidade” despertada na consecução pragmática da “prosperidade” pudesse, num dado momento do progresso, refletir e refrear-se em busca de um sentido maior para o que se faz… Não cabe esse otimismo: a orientação industrialista é um caminho sem volta; não teremos humanos ao fim desse processo.

Uma cidade pode estar erguida, a rigor dos conceitos urbanísticos mais modernos, e, no entanto, nunca ter alcançado satisfatório grau de “civilização” humanística. O processo que ignora o ser humano, aliás, é o fundo corriqueiro das mais brutais desigualdades.  A Educação, no sentido proeficiente, nobre, é o processo holístico que envolve o ser, desde o ventre materno, até o idoso dignificado, que restou sábio o suficiente para expressar-se e semear sua sabedoria.

A Revolução Silenciosa

A nós que sonhávamos com dar a vida pela ‘revolução tardia’, a História cruelmente se encarregou de demonstrar que é inaplicável o Socialismo, em nível de um Sistema Geral. A razão primeira desse impasse é a caótica humanidade de que dispomos – ninguém poderá construir um edifício sem matéria! Mas, a grande questão é “em que poderá ser revolucionária essa paixão humanística que restou latente dentro de nós?” Este é o dilema dos órfãos da revolução.

Ressalte-se que o grande oponente da mudança – o reacionarismo – agora é outro; ou pelo menos está complexificado na figura hipócrita da Democracia Social, que, até então, apenas tem sociabilizado os lucros do privilégio entre seus pares.

Contrapondo-se a isso, as características de cooperativismo e associativismo podem, e estão aí, a minar as bases de uma democracia neoliberal muitas vezes direcionada ao contrário das funções essenciais do Estado, que é a promoção do bem estar e do desenvolvimento humano. Também a correlação que se tem feito entre Educação e desenvolvimento, no âmbito dos organismos internacionais, tem impulsionado os governos locais ao debate dessa agenda. Está, parcimoniosa, mas é verdade, uma ‘revolução’ social em curso, silenciosa. Ecoando dos rincões, conseqüência dos gritos de opressão e violência. Mal ou bem, os cabrestos têm sido arrancados e duras penas terão que ser pagas pela liberdade, e pelo direito de revolucionar, no alcance da individualidade.

Portanto, extintas as metas radicais do Socialismo Utópico, ainda mais urgentes permanecem os anseios de humanizar o homem. Resta latente o sentimento inquieto na busca da justiça e da igualdade cívica. O grande terreno mundial que se almejou como cenário para a construção da verdadeira harmonia entre humanidades, agora se acha reduzido ao pequeno espaço dos corações e mentes humanistas. Disso salta evidente que a ‘nova revolução’, em seu discreto modo de obsessão, ainda vive, e cada um deve tomar o seu pequeno mundo social, para transformá-lo com o amor – aquele amor que, segundo Ernesto Guevara de La Serna. Move todo revolucionário.

Não é mais o Socialismo de massas iluminadas e pungentes, mas agora são pontos cintilantes de inconformismo. A isso podemos chamar ‘consciência humanística’, em contraposição à inaplicável ‘consciência de classe’. Não se trata, contanto, de apregoar o típico individualismo que condenamos na sociedade de consumo. É somente a crença aplicada de que o homem, no seu íntimo, pode refletir com amor e partir para transformar sua posição. A batalha deve ser travada no nível do espírito, lá onde o capitalismo hedonista foi fazer suas presas. Se o materialismo marxista perdeu em ignorar o subjetivismo da alma humana, nós, com menções de doçura e fraternidade, podemos cooptar o homem através do apelo à sensibilidade. Somente o amor transforma. Sem sangue e sem dor.

Diferenças: observe a “tolerância” da natureza

Está mais que claro, pelas faces, que são distintas; pelas vontades, pelos gostos, pelas cores… Que a natureza impõe a TOLERÃNCIA como recurso de sobrevivência e paz. Do mundo natural, aliás, é que decorrem as próprias disparidades sociais, reveladas em tantas religiões, tanto partidarismo político, tanto fulgor criativo nas artes, e pouca fraternidade. É preciso acima de tudo respeitar como “igual”, na condição humana frágil que cada um sustenta. Se olharmos esses rostos tão “longínquos”, entretanto, vemos uma unidade, uma característica que, em maior profundidade, nos torna irmãos. Isso: somos irmãos, e nem precisamos impor uma concepção ideológica ou religiosa aos outros. Somos, no mínimo, irmãos em espécie.

Foto e montagem de Memo Vasquez, no Flickr... "diferentes mas iguais".

Foto e montagem de Memo Vasquez, no Flickr... "diferentes mas iguais".