A história do fluxo dos recursos públicos ─ o capital amealhado pelo estado dentre o povo, na forma de impostos e taxas ─ pode ser contada assim. O elemento-base desse fluxo é o trabalhador público. Cabe ressaltar que antes da República “trabalhadores públicos” talvez fossem a categoria mais vasta no mercado de trabalho, incluindo desde artesãos do reino, burocratas, cobradores de impostos até sujeitos portadores de títulos nobiliárquicos. Esta categoria distribuía recursos aos profissionais liberais, até o fim do séc. 19. Com o avanço do capitalismo industrial, o bolo oriundo do setor público passou a ser interceptado por empresas, em princípio antagônicas e adversárias do individualismo profissional. Depois de instituída a República (1889), políticos mandatários assumiram relevância no controle do caixa do estado. Elites empresariais então posicionaram representantes de seus oligopólios acima do serviço público, encaixando políticos patrocinados e garantindo a drenagem de recursos, que resultou no enriquecimento de segmentos da elite social e no aprofundamento das desigualdades.
Imagem que simboliza a magnitude da educação popular brasileira, conforme o sistema a concebeu.
Explorados permaneceram o povo e os profissionais liberais, sendo que estes últimos alçaram-se à posição de uma classe média, quando essencial sua função, mas sua depreciação é crescente, embora se destacassem do povo. Com exceção da advocacia, salva pela complexificação da lei e da burocracia, os professores também são destronados de sua importância clássica, tendo inclusive dificuldade de se manter ‘médios’, jazendo sobre os pobres a algumas cifras de distância.
A depredação dos Serviços públicos
Pela ótica do trabalhador público, comprimido de fora pelos interesses econômicos que também brotam acima, através de políticos, o que há é um flagrante capitalismo de estado. Por essa verdadeira doutrina, os salários precisam ser arrochados, o estado deve ser mínimo; são criadas vedações à expansão da folha de pagamentos, etc, como se o endividamento público histórico fosse parar de modo generoso, no bolso do trabalhador. Do lado de fora, os profissionais liberais, agora chamados à carreira do estado, são cada vez mais subvalorizados: o médico, o professor, o engenheiro, etc. E desenvolvem também seus “cartéis”, chamados de órgãos representativos, conselhos. “Corporativismo se paga com corporativismo”.
Concentração da oferta de serviços básicos
E onde à esta altura estão os pobres? Estão sendo mais pauperizados: os médicos se voltam para os mercados ricos, os engenheiros se voltam para o faraonismo metropolitano, os professores, parte se engaja na educação “de qualidade”, requerida pelas elites, parte se engalfinha nas periferias e sertões, até um dia serem eles mesmos o povo oprimido. E gente sem cultura passa a redistribuir pouca cultura, um conhecimento amorfo, desculturado, uma educação sem dinheiro nem alma. Ah! O povo: ele jaz sem Medicina, sem urbanização, sem educação, sem poder político. E os recursos públicos continuam sua caudalosa corrente em direção, agora, às multinacionais, ou à grandes companhias nacionais.
Não se há de dizer que a desigualdade é ilegal!
Vamos de exemplo: quando se fez a Lei de Licitações, com objetivo de regrar a escolha dos destinatários da verba pública, as grandes empreiteiras acionaram seus lobbies. Homens doutos, cheios de princípios, entre eles a muito benquista “impessoalidade”, garantiram então que não haverá um nicho sequer no País onde o capital não possa entrar. A Lei 8666/93 não previu saúde, nem educação, nem a regionalização, que seria capaz de evitar a fuga de riquezas para os centros urbanos. Outro exemplo casado: quando se fez a Lei de distribuição dos royalties do petróleo, os homens doutos vetaram dispêndio com trabalhadores ou previdência social, como se o pretenso “desenvolvimento das cidades” passasse longe do desenvolvimento humano. Já as grandes corporações, elas estão livres, pelo conjunção dessas duas leis, a adentrar em cada rincão, e abocanhar dinheiro do petróleo em obras públicas.
A era da informação reforma o setor público ─ o povo quer a revanche
Para então concluir a saga, hoje a grande tensão social, pasmem com a contradição, é pelo ingresso na carreira pública. As razões? Várias. Citarei algumas. No enredo da evolução republicana, do ponto de vista econômico, o setor mais depredado foi o setor de serviços públicos, como discorremos. A arrecadação era para as elites. Não obstante isso, influências culturais exógenos, mais fortemente no pós-segunda guerra mundial, combinados ao avanço das tecnologias, sobretudo de comunicações ─ tevê, rádio, telefonia, etc ─ induziram mesmo o homem mais interiorano a exigir algo em troca de seu sacrifício tributário. Até então, como vimos, esse bolo era comido apenas pelos oligopólios. A pressão pela quantidade e qualidade na assistência, forçou os dirigentes políticos a pressionar a produtividade do setor público ─ eles não abririam mão, obviamente, de sua riqueza direta! Ocorre que essa produtividade tem um custo, e o custo maior é pago com o fornecimento de garantias ao servidor público, não necessariamente pecúnia. Daí resulta a explicação que muitos dão para pleitearem cargos públicos, apesar dos salários medianos: estabilidade. E note-se que, quando raro, somente profissionais liberais que alcancem força corporativista conseguem melhores resultados no setor público, quando não passam direto à função de políticos, ou algozes.
Resta então o desafio: como manter-se ético o indivíduo em meio a uma máquina estatal notadamente antiética, desumana e elitista?
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