Roubaram a engrenagem e deixaram uma gravação automática rangendo em seu lugar

No sistema constitucional brasileiro, a ideia é o governo ‘controlar’ as atividades econômicas privadas e o Legislativo por sua vez controlar o governo, estando como mediadora dos eventuais conflitos a Justiça, numa engrenagem fechada, mútuo-regulada.

O amálgama moral desse sistema era inicialmente a ética cristianista (residual), depois a ética secular – quando da firmação do laicismo do estado –, e atualmente não se nega que a ética é a mais controversa: a capitalista.

Foi no contexto da difusão do capitalismo mundial que ocorreu, entretanto, uma grave disfunção nos mecanismos dessa engrenagem: o sistema econômico, na prática, ‘compra’ o governo e o governo compra o Legislativo, pois o patrimonialismo é a força que predomina.

Já a aparente inércia da Justiça veio sendo cultivada como um defeito doméstico, um mal necessário à harmonia e à ordem. Os conflitos atacados pela dama cega não são mais aqueles que perturbam a ordem republicana, mas a ordem derivada.

Esse cenário, de modo geral e na raiz, é causado pela maxivalorização que a sociedade de consumo atribui à acumulação de riquezas, em detrimento de outros valores morais e humanísticos.

Obviamente o acúmulo de riqueza num polo gera escassez no outro – a natureza é exaurível e finita –, e no lado pauperizado, a alta estimação da prosperidade, se não resulta em riqueza, acaba se justificando pelas necessidades vitais, pela propaganda e pela difusão do status dos ‘vencedores’.

Cabe ainda um ponto nessa lista de indutores de consumo que é a paradoxal ‘teologia da prosperidade’, que se espalhou como um rastilho no seio da maior religião do Brasil.

Considerando que a classe ‘culta’, em vez de culpar o sistema culpa os ‘eleitores’, vale também ressaltar uma afirmativa crucial à interpretação do sistema em que o povo resultou em ser o culpado-vitima: o que o estado sequestrado pelo capital pode inculcar na consciência popular é infinitamente mais potente do que aquilo que se transmite na relação de base ‘homem-comunidade-hereditarismo’ (conhecimento tradicional). Ciente desse poder, o mercado, a elite que os ‘cultos’ poupam, usurpa o estado, se apropria dos canais de informação, passando a induzir a formação de consumidores-eleitores, não cidadãos, na acepção republicana.

O ciclo de desfiguração do poder, portanto, antecede e sobrepõe-se ao simples gesto de apertar um botão de urna ou receber dinheiro para apertar tal e qual número. Quando negros e mulheres passaram a votar, por exemplo, o sistema já era de escolhas artificiais.

Critica-se a classe culta, leia-se média, por que ela não alveja a elite – posição que acredita poder um dia ocupar. Ela demoniza as vítimas, criando álibi para o opressor que almeja ser.

E o povo, essa massa que recebe da comunicação privada seu norte ideológico, tem tão somente a chance de votar naqueles que melhor se sucedem nesse ciclo de negociações opacas e espúrias. •

Família tradicional brasileira

Voto Nulo Anula o Próprio Eleitor

No meu entendimento, a opinião mais deteriorada de um cidadão é “todos roubam, não voto em ninguém”. Equivaleria a alguém que cometesse suicídio, ao constatar que “todos morrem”. Só seria inteligente a abstenção, se nós pudéssemos também nos excusar de sermos vítimas; mas não é assim.

“Mesmo com ordem judicial, idosa morre após sete dias aguardando vaga” (http://is.gd/g7olg) = não vote em ninguém (?!)

Governar é muito mais do que ‘roubar ou não roubar’. Embora a honestidade seja essencial apecto do caráter. O eleitor não vai à urna responder singelamente ‘Dilma’ ou Serra’; ‘rouba’ ou ‘não rouba’. Basta ver que há dolo, culpa ou omissão em quaisquer segmentos da sociedade — nós mesmos temos nossas falhas, mesmo que sejamos a nosso ver corretos — é da natureza humana. Não estamos elegendo santos. O voto é a prática de uma leitura política voltada ao longo prazo — vota-se ‘no menos pior mesmo’, se formos pensar que as pessoas podem ser julgadas apenas pelos defeitos.

Só acredito que há ainda muita luta antes de se ‘rasgarem’ votos. Pode-se melhorar a educação do eleitor, torna-lo facultativo, tornar distrital-misto, restringir acesso de fichas-sujas, etc. Se no entendimento dos pessimistas, o voto não tem poder de influenciar positivamente a sociedade, eu pergunto: pra que serve o voto nulo? Não seria menos ‘omissão’ lutar pelo direito de não votar?! Ah! é mais cômodo botar grades nas janelas, blindar o carro, morar em condomínio, e pagar um plano de Saúde. Então a massa vota, mesmo errado (muitas vezes!), pois ela não tem esses privilégios típicos da classe que reservou a boa educação pros seus filhos… Talvez a massa vote por instinto, pra que, de erro em erro, um milésimo de grau talvez seja alterado.

Imagine o cenário pessimista: a cultura do ‘voto nulo’, subindo de 5% a 5%, será eficaz dentro de 20 eleições — 80 anos; quando chegar lá, se elegerá necessariamente o ‘superman’ que nossos filhos quiserem! E será uma espécie de Salomão — justo, reto e piedoso (mas com 700 concubinas, que ninguém é de ferro). Pergunto então: não há nada que se faça antes?

“O maior castigo para aqueles que não se interessam por política, é que serão governados pelos que se interessam.”(Arnold Toynbee)

Podem colocar os verbos no passado: por isso é que chegamos a este estágio de decepção. O que é: querem vestir a omissão com a aparência de ‘cidadania’?!

Ontem morreu mais uma mulher, negra, idosa e pobre — estereótipo preferido das injustiças. A hipotética ilusão satisfaz melhor minha ética humanista do que um ‘virar de costas’, que se faz com o utópico ‘voto nulo’. O voto nulo só anula o próprio eleitor.