Triste constatação: atualmente, quando uma criança nasce — pura, sem dogmas nem preconceitos — ela está mais próxima de ser ‘civilizada’ do que quando alcança a juventude. O abandono da família, em meio ao afã do progresso, combinado ao sistema de ensino, estão descivilizando e desumanizando. São as armaduras de insensibilidade, os pejos, os rancores, a competitividade, o apego ao dinheiro, que nos transformam em bárbaros, aptos apenas a manejar instrumentos que garantam superar os ‘oponentes’ da espécie, a sermos superiores em bens e status.
Não são necessários argumentos científicos ou estatísticos muito rebuscados para afastar de antemão a máscara que a desigualdade adquiriu com o neoliberalismo — a ‘meritocracia’ ampla e irrestrita. Já havia, por exemplo no clássico Leviatã, amplamente estudado nas ciências sociais e políticas, uma chave para o desencadeamento da igualdade de oportunidades:
“A natureza fez os homens iguais nas faculdades do corpo e da mente, embora se possa encontrar às vezes um homem obviamente mais forte de corpo ou de mente mais rápida do que outros. Contudo, quando se considera o conjunto, a diferença entre um homem e outro não é tão notável a ponto de justificar que alguém reivindique para si um benefício a que outro não possa igualmente almejar” (Thomas Hobbes, “Leviatã”).
Na citação de Herbert de Souza (o Betinho), que ilustra esse texto, ademais, vê-se uma aplicação prática da maldade, quando condenamos jovens e crianças vitimadas pela desigualdade, com alegação de “não serem piores nem melhores do que ninguém”, sem contudo ter tido a sociedade o cuidado de fornecer paridade de condição, na raiz do desenvolvimento:
“Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Essa que vejo na rua, sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida; essa que vive a solidão das noites sem gente por perto, é um grito, é um espanto. Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro, porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós”.
É sobre essa tese que devem laborar todos os que acreditam na injustiça disfarçada de justiça, levantada ameaçadoramente por fundamentalistas e reacionários que infestam o Congresso Nacional. A diminuição da idade de imputabilidade penal, nesse cenário, consiste numa medida tópica, populista, mais apta a produzir vingança do que justiça, na acepção social.
As responsabilidades, antes, devem ser atribuídas à família e ao estado, se não quisermos aprofundar o higienismo.•