Três bens humanos têm primazia na escala de valores essenciais, tanto que são defendidos mesmo por instinto animal: a vida, a liberdade e a saciedade alimentar.
O contrário da vida é a morte; seu decréscimo, a indignidade. O contrário da liberdade é a prisão; seu decréscimo, o cerceamento. O contrário da saciedade é a fome; seu decréscimo é a desnutrição, em variáveis graus.
Por intrincadas condicionantes, os dois primeiros bens não são usufruíveis sem o terceiro, e vice versa. Por isso não se há de falar em democracia e civilidade onde houver inanição. Não se aproveita na plenitude a vida e a liberdade, sem o corpo saciado e sociável.
Por outro lado, aos poucos se desvenda que em ausência de sanidade física não há higidez mental, paz de espírito; e, na ausência de mente sã, sequer está garantido que o ser humano prezará com perfeita lucidez, pelos bens capitais – a vida e a liberdade. Vai-se assim à cotidiana barbárie.
Mas apesar desse arcabouço lógico, que faz constatar o óbvio, o debate sobre a suficiência alimentar como direito fundamental nunca esteve na pauta macropolítica dos governos, mesmo no mundo dito desenvolvido, na Europa (E. P. Trompson oferece uma das pesquisas históricas mais profundas sobre isso, em Costumes em Comum, pautando a fome no âmbito da economia moral, editado aqui pela Companhia das Letras).
As moléstias da desnutrição e da fome são flagelos que se mantém invisíveis, causando deteriorações como a baixa eficiência cognitiva, as restrições na produtividade manufatural e a alta susceptibilidade patológica. Educa-se melhor quem estiver alimentado; produz com maior qualidade agregada, quem melhor se nutre, e adoece menos quem tem garantido meios adequados de nutrição.
A fome e a má nutrição, sem dúvida, são causas e sintomas que afetam apenas uma classe. E por esta simples constatação, o tema não é de interesse dos estratos médios e altos da sociedade, mesmo dos países pobres, como o nosso.
O sistema alimentar, desde sempre, garantiu assim o predomínio de uma classe sobre as outras. E para isso nem será necessário amealhar fatos abundantes e redundantes na história antiga, desde os Assírios, Babilônicos e Chineses. Aliás, a Bíblia oferece um profícuo exemplo no caso do predomínio egípcio sobre os semitas (judeus).
No Brasil esse retrato estarrece mais, porque o curto tempo de nossa formação como povo de caracteristicas próprias condensa os fatos ao longo dois quais se pode separar claramente o predomínio da classe dos banquetes sobre a classe do farelo – os que tinham armazéns e conhecimento alimentar versus os que, mesmo em presença de certos alimentos e pouca terra, não dispunham do conhecimento teórico capaz de habilitar a novos cultivos, adaptações e beneficiamentos.
Assim foi que, muito recentemente, durante os anos 1990s, mesmo com a computação e a internet revolucionando o mundo corporativo, no Brasil ainda se morria de indigência e de fome, ou melhor, de degerenação orgânica e de complicações decorrentes da má nutrição.
Uma das capas da revista Veja, em 1998. Foca a fome na região mais socialmente precária do Brasil.
Já nos idos do governo Fernando Henrique Cardoso, por força de um debate social que houvera sido levantado desde os anos 1980s, por Betinho, por setores católicos e pela esquerda (leia-se Darcy, Freire, Brizola e Lula etc), houve medidas tímidas, como o programa de que a primeira dama, D. Ruth Cardoso, era entusiasta.
Entretanto, apesar de dramas relacionados à desnutrição, como a mortalidade infantil, virem caindo em todo o mundo, desde o fim da Segunda Guerra, aqui os reflexos do recuo eram sentidos sutilmente apenas no Sul/Sudeste; no Norte e no Nordeste, mortalidade neonatal e infantil eram em padrão similar ao da Africa subsaariana. Raro era um casebre onde um filho não se tivesse perdido.
Foi contudo a partir da chegada de Lula ao poder, em 2003, que a ‘pobreza entrou no orçamento’. Já não era mais uma caridade subsidiada, sobre o que se dizia, que devia ser feita por ONGs e fundações; já não era um fundo de cena para socialites ostentarem suas vaidosas piedades.
Lula regulamentou a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social, de 1992), criou o Ministério do Combate à Fome e à miséria, regulamentou seus dispositivos, fixou por atos oficiais as metas de combate à pobreza, orquestrando equipes técnicas multidisplinares de alta expertise na direção de combater o maior flagelo do Brasil – a fome causadora de mortes e de atraso social.
O combate à pobreza e à fome passou a ser reconhecido como DIREITO e POLÍTICA SOCIAL. Os orçamentos anuais, votados pelo Congresso, passaram a embutir 10 a 15 bilhões anuais para essa meta, distribuídos entre uma cesta de programas sociais hoje reconhecidos no mundo inteiro.
A situação de alguns grupos e indivíduos, cabe ressalvar, era tão grave – e ainda há um resquício disso – que alguns deles sequer possuíam status de civilidade e sanidade social mínimas, para encaixar-se em programas como o bolsa família, que exige burocracias, manutenção de cadastro, assiduidade escolar etc. Para segmentos como esse, foi criado o CRAS – Centro de Referência da Assistência Social (e o CREAS), voltados à atenção permanente.
Finalmente, números do IPEA, FGV, FAO e outras entidades nacionais e internacionais reconhecem que cerca de 53 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema e da indigência, em uma década, o que representou mais de 97% do total estimado.
Não se precisa ser um gênio acadêmico para compreender que o combate à fome, como política de Estado, busca resultados de curto, médio e longo prazos. Sabe-se que os males da fome tem desdobramentos sobre o quadro de migrações, de erradicões do meio social e da violência, e podemos estar ainda sob efeito daquilo que os sociólogos e chamariam ‘geracoes perdidas’, por isso, de imediato, o fim da fome não reestabelece o desejado status de harmonia social.
O Risco que paira sobre nossas cabeças é exatamente o de que tais resultados mais complexos no tecido social nunca cheguem, pois, a política de austeridade fiscal, imposta pelo neoliberalismo, em favor do rentismo é da desigualdade, estão trazendo de volta a vida indigna, o cerceamento da liberdade e pondo em risco os programas sociais de base, contra a maldita má nutrição. ★
Capa da revista Veja, em 1998.